
Rua José Afonso (1929-1987)
26 de Outubro de 2023Era meia-noite e vinte minutos. Na madrugada de dia 25 de Abril de 1974, a segunda senha para o arranque das operações militares que viriam a derrubar o Estado Novo, ouviu-se no programa “Limite” transmitido pela Rádio Renascença. Aos microfones, Leite de Vasconcelos lançou a segunda e derradeira senha para o início do golpe de Estado: a canção “Grândola Vila Morena” de Zeca Afonso, transformando-a no hino do Movimento das Forças Armadas (MFA). A canção é a quinta faixa do álbum “Cantigas do Maio”, gravado em Dezembro de 1971, em Hérouville (França) entre 11 de Outubro e 4 de Novembro de 1971 foi cantada pela primeira vez por Zeca Afonso em Santiago de Compostela (capital da Galiza), em 10 de Maio de 1972. A este propósito foi inaugurado em 2009, um parque com o seu nome em frente do Auditório da Galiza.
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● A 29 de Março de 1974, no Coliseu de Lisboa realiza-se o I Encontro da Canção Portuguesa, organizado pela Casa de Imprensa. O evento teve a participação de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, José Jorge Letria, Manuel Freire, José Barata Moura, Fernando Tordo, entre outros, que terminaram a sessão com “Grândola, Vila Morena”. Militares do MFA estão entre a assistência e escolhem a canção para senha da revolta. No dia do espectáculo, a censura avisara a Casa da Imprensa, organizadora do evento, de que eram proibidas as representações de várias canções. A “Grândola, Vila Morena” foi autorizada.
Esta circunstância histórica associou definitivamente o cantor ao “25 de Abril” que tem sido homenageado em diversas cidades, vilas e lugares do nosso País. A freguesia de Carcavelos Parede não é excepção: em 5 de Julho de 1995, a Câmara Municipal de Cascais (CMC) deliberou atribuir o seu nome a uma rua que começa na Rua da Escola Secundária de Carcavelos e termina na Rua Vieira da Silva, na Urbanização Checlos.
<h1>Infância atribulada</H1>
José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos nasceu a 2 de Agosto de 1929, em Aveiro, no seio de uma família burguesa, sendo filho de José Nepomuceno Afonso dos Santos, magistrado, e de Maria das Dores Dantas Cerqueira, professora primária. Os primeiros anos da infância são passado nesta cidade, entregue à educação dos seus tios, em que predominava um espírito “republicano anticlerical e anti-sidonista”. Os seus pais tinham ido, em 1930, para Angola, porque o seu pai tinha sido colocado como delegado do Procurador da República no Cuito (antiga Silva Porto) na província do Bié. Em 1933, José Afonso junta-se aos seus progenitores. Durante 52 dias, a viagem realizada no vapor “Mouzinho”, é acompanhado por um tio advogado em lua-de-mel, e um missionário. Os primeiros estudos realizam-se em Angola.
Em 1936 regressa a Aveiro, para casa de umas tias do lado materno. A escola primária foi problemática: “o professor pendurava-me pelas orelhas porque eu era distraído”, relembra.
No ano seguinte, junta-se aos pais e aos dois irmãos (João e Maria) em Moçambique. África era o “paraíso” e representou um período feliz. “sonhava nunca mais abandonar aquela terra”, confessa. Em 1958, regressa a Portugal, desta vez para casa do tio Filomeno Afonso, notário e presidente da Câmara Municipal de Belmonte. Nesta cidade, conclui a quarta classe. O tio, salazarista convicto, fá-lo envergar a farda da Mocidade Portuguesa. “Uma terra horrível. Um período fechado. Privado de contactos. Não podia sequer dar-me com os meninos da vila”, revela mais tarde. Em Belmonte, fez a 4.ª classe.
Em 1940, chega a Coimbra, sendo matriculado no Liceu D. João III. Vive em casa de uma tia paterna, na Av. Dias da Silva, actual nº112. Entretanto, o pai foi exercer as funções de juiz em Timor. Mariazinha vai com eles, enquanto o seu irmão João vem para Portugal. Com a ocupação de Timor pelos japoneses, José Afonso fica sem notícias dos pais durante três anos, até ao final da II Guerra Mundial (1945).
<H1>O despertar para a música</H1>
A vida coimbrã acaba por o despertar para o fado. No liceu, conheceu António Portugal e Luiz Goes. José Afonso era tratado por “bicho-canto”, o que lhe permitia não ser “rapado” pelas “trupes” académicas. “Bicho” era a designação da praxe de Coimbra para os estudantes liceais (José Afonso andava no 5.º ano do liceu), com mais deveres do que direitos na comunidade estudantil.
De 1946 a 1948 completa o curso dos liceus, após dois chumbos. Conhece Maria Amália de Oliveira, uma costureira, com quem vem a casar em segredo, devido à oposição dos pais. Entretanto, viajou com o Orfeão e a Tuna Académica, assim como jogou futebol na Associação Académica de Coimbra.
Em 1949, dispensado do exame de aptidão à Universidade, inscreve-se no curso de Ciências Histórico- -Filosóficas da Faculdade de Letras.
Com o nascimento do primeiro filho (José Manuel) e o aumento das responsabilidades em 1953, obrigam-no a diversificar actividades para obter receitas domésticas.Dá explicações e faz revisão no “Diário de Coimbra”.
Entre 1953 e 1955 cumpre, em Mafra, serviço militar obrigatório. Apesar de mobilizado para Macau, acaba por não ir devido a problemas de saúde, sendo colocado num quartel em Coimbra.
As dificuldades económicas aumentam: em 1954 tinha nascido a filha Helena. Entre 6 de Janeiro a 30 de Setembro de 1957, vai dar aulas num colégio privado em Mangualde. Em 1963, já enquanto estudante voluntário da Universidade, termina o curso na Faculdade de Letras de Coimbra, com uma tese sobre Jean-Paul Sartre: “Implicações substancialistas na filosofia sartriana”, classificada com 11 valores.
Entre 28 de Outubro de 1957 e 22 de Julho de 1958, foi professor provisório na Escola Industrial e Comercial de Lagos, onde regressará entre 19 de Outubro de 1962 a 31 de Julho de 1963, altura em que conhece Zélia (1961), a sua segunda mulher de quem terá dois filhos: Joana e Pedro. Nas terras algarvias convive em Faro com Luiza Neto Jorge, António Barahona, António Ramos Rosa, entre outros. Entretanto, envia os dois filhos para Moçambique, para junto dos avós, devido a dificuldades financeiras. Em 1959, é colocado por 10 dias num colégio em Aljustrel, transitando depois para a Escola Técnica de Alcobaça, onde é professor provisório entre 3 de Outubro de 1959 e 30 de Julho de 1960. A 1 de Junho de 1963, divorcia-se da primeira mulher, um processo que tinha começado anos antes.
Entre 1964 e 1967, José Afonso vive em Lourenço Marques com a segunda mulher e os seus dois filhos. Nos últimos dois anos, dá aulas na Beira, onde musicou a peça “A Excepção e a Regra” de Bertolt Brecht. Entretanto, nasce a sua filha Joana (1965).
Em 1967, regressa a Lisboa deixando o filho mais velho, José Manuel, confiado aos avós em Moçambique. Colocado como professor em Setúbal, sofre uma grave crise de saúde que o leva a ser internado durante 20 dias na Casa de Saúde de Belas. Quando sai da clínica, fica a saber que tinha sido expulso do ensino oficial. Em 1968 dedica-se a dar explicações e a cantar com mais assiduidade nas colectividades da Margem Sul, onde é nítida a influência do Partido Comunista Português.
Em 1979, José Afonso vai viver para Azeitão, sendo reintegrado no ensino oficial. Passa a ser professor de História e de Português na Escola Preparatória de Azeitão.
<H1>Confirmação de uma vocação</H1>
A música acompanha-o desde a vida coimbrã, sendo solicitado para realizar serenatas, espectáculos e digressões. Em 1953, lança o seu primeiro LP (disco de 78 rotações), editado pela Alvorada e gravado no Emissor Regional de Coimbra da Emissora Nacional, Intitulado “Coimbra”. Em 1956 é editado novo EP, intitulado “Fados de Coimbra”. Numa digressão da Tuna Académica a Angola, José Afonso é o vocalista do Conjunto Ligeiro. “Actuámos vestidos com umas largas blusas de cetim, cada uma de sua cor, imitando a orquestra de “mambos” de Perez Prado, o máximo da altura”, recorda José Niza.
A 4 de Dezembro de 1957, José Afonso actua em Paris, no Teatro “Champs Elysées” ao lado de Fernando Rolim, voz, António Portugal e David Leandro nas guitarras de Coimbra e Sousa Rafael e Levy Baptista nas violas.
Em 1960 é editado novo disco. Trata-se de um EP para a Rapsódia, intitulado “Balada do Outono”. Em Agosto faz nova digressão com o orfeão Académico de Coimbra a Angola. Ainda neste ano, desloca-se a Paris e Genebra com Fernando Rolim, voz, António Portugal e David Leandro nas guitarras de Coimbra e Sousa Rafael e Levy Baptista nas violas. Na cidade helvética grava uma serenata para a “contra Eurovisão”.
Em 1962 é editado o álbum “Coimbra Orfeon of Portugal”, pela Monitor, dos Estados Unidos, com “Minha Mãe” e “Balada Aleixo”, no qual José Afonso rompe definitivamente com o acompanhamento das guitarras, mantendo apenas os violas (José Niza e Durval Moreirinhas).
Realiza digressões pela Suíça e Alemanha onde grava para a televisão e na Suécia actua na Gala dos Reais Clubes Suecos, integrado num grupo de fados e guitarras, na companhia de Adriano Correia de Oliveira, José Niza, Jorge Godinho, Durval Moreirinhas e ainda da fadista lisboeta Esmeralda Amoedo.
Em 1963, novo EP de “Baladas de Coimbra”. No ano seguinte, José Afonso actua na Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, onde se inspira para fazer a canção “Grândola, Vila Morena”. No ano seguinte é a vez do EP “Cantares de José Afonso”, o único para a Valentim de Carvalho. Ainda em 1964 é editado, pela Ofir, o álbum “Baladas e Canções”, que virá a ser reeditado em CD pela EMI em 1996.
<H1>Contrato “sui generis”</H1>
Em 1967, é publicado o livro “Cantares de José Afonso”, pela Nova Realidade e assina um contrato discográfico com a “Orfeu”, que acabará por gravar a maioria da sua obra musical. Pelo Natal, edita o álbum “Cantares do Andarilho”, com Rui Pato, o primeiro disco para a Orfeu. O contrato é sui generis: contra o pagamento de uma mensalidade (15 contos), José Afonso é obrigado a gravar um álbum por ano, iniciando a produção de uma vasta obra musical.
Em 1969, surgem o álbum “Contos Velhos Rumos Novos” e o single “Menina, dos Olhos Tristes”. Pela primeira vez, num disco de José Afonso, aparecem outros instrumentos para lá da viola ou guitarra. Trata-se do último álbum com Rui Pato. Em 1970, é editado o álbum “Traz Outro Amigo Também”, gravado em Londres, nos estúdios da Pye, o primeiro sem Rui Pato, impedido pela PIDE de viajar. Carlos Correia (Bóris), antigo músico de rock, dos “Álamos” e do “Conjunto Universitário Hi-Fi”, substitui Pato. Em 1971, é lançado o álbum “Cantigas do Maio”, gravado perto de Paris, nos estúdios de Herouville, um dos mais afamados da Europa. O álbum é geralmente considerado o melhor disco de José Afonso.
Os últimos tempos
Em 1985, é editado o último álbum, “Galinhas do Mato”. José Afonso já não consegue cantar todos os temas, sendo substituído por Luís Represas («Agora»), Helena Vieira («Tu Gitana»), Janita Salomé («Moda do Entrudo», «Tarkovsky» e «Alegria da Criação»), José Mário Branco («Década de Salomé», em dueto com Zeca), Né Ladeiras («Benditos») e Catarina e Marta Salomé («Galinhas do Mato»). Arranjos musicais de Júlio Pereira e Fausto.
José Afonso morreu no dia 23 de Fevereiro de 1987, no Hospital de Setúbal. O funeral realizou-se no dia seguinte, com mais de 30 mil pessoas, da Escola Secundária de S. Julião para o cemitério da Senhora da Piedade, em Setúbal. O funeral demorou duas horas a percorrer 1300 metros. Envolvida por um pano vermelho sem qualquer símbolo, como pedira, a urna foi transportada, entre outros, por Sérgio Godinho, Júlio Pereira, José Mário Branco, Luís Cília, Francisco Fanhais.
<H1>Avesso a distinções institucionais</H1>
José Afonso foi sempre avesso às honrarias institucionais. Em 1983, o então Presidente da República, António Ramalho Eanes, atribuiu a Zeca Afonso a Ordem da Liberdade, mas o cantor recusou. Onze anos depois, o Presidente da República, Mário Soares, tentou condecorar postumamente José Afonso, mas a sua viúva, Zélia Afonso, recusou, alegando que o músico não desejou a distinção em vida. Em 2018, a Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) propôs a trasladação dos restos mortais de José Afonso para o Panteão Nacional, tendo sido criticada e recusada pela família do cantor. Não obstante, José Afonso tinha já sido laureado pela Casa da Imprensa, como o melhor compositor e intérprete de música ligeira, nos anos de 1969, 1970 e 1971. A 18 de Novembro de 1987, foi apresentada a Associação José Afonso, uma entidade cultural e cívica, não confessional, formada em torno da memória do cantor e presidida por Francisco Fanhais.
Actualizado em
ACTIVIDADE POLÍTICA
● Dado o crescente interesse de José Afonso pela estética neo-realista e o empenhamento político, o Partido Comunista Português (PCP) convida-o a aderir ao partido que José Afonso recusa. Em 1969, José Afonso participa activamente neste movimento, assim como nas acções dos estudantes em Coimbra.
Em 1973, depois de muitas sessões proibidas pela polícia política (PIDE/DGS) é preso em Abril e fica 20 dias em Caxias até finais de Maio. Na prisão, escreve o poema “Era Um Redondo Vocábulo”.
Entre 1974 a 1975 envolve-se directamente no Processo Revolucionário Em Curso (PREC) e na mobilização da Reforma Agrária. Cantou no dia 11 de Março de 1975 no RALIS para os soldados. Estabelece uma colaboração estreita com o movimento revolucionário LUAR, através do seu amigo Camilo Mortágua, dirigente da organização que edita o single “Viva o Poder Popular”.
Em 1976 apoia a candidatura presidencial de Otelo Saraiva de Carvalho, cérebro do 25 de Abril e ex- -comandante do COPCON (Comando Operacional do Continente), apoio que reedita em 1980. Seis anos mais tarde, apoia a candidatura presidencial de Maria de Lourdes Pintassilgo, católica progressista.
Sobre os destinos da militância perdida e da música de intervenção, tão em voga nos tempos revolucionários, afirmou numa das suas derradeiras entrevistas, concedida a Viriato Teles, publicada a 27 de Novembro de 1985, no “Sete”: “sempre disse que a música é comprometida quando o músico, como cidadão, é um homem comprometido. Não é o produto saído do cantor que define esse compromisso, mas o conjunto de circunstâncias que o envolvem com o momento histórico e político que se vive e as pessoas com quem ele priva e com quem ele canta”. Sobre a sua obra musical: “não sei se lhe chame música de texto, música social, música de intenção política, música de intervenção”. A este propósito, José Afonso confessou certa vez: “Precisava de criar um hiato. Precisava de desmemoriar-me por completo. E ser, depois, uma personagem do teatro de Pirandello”. Em certo sentido, o cantor assumia-se como uma das personagens à procura de um autor, título de uma famosa comédia daquele dramaturgo.
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