Sampaio Bruno: vinte contra um

Sampaio Bruno: vinte contra um

23 de Outubro de 2023 0 Por Jorge Morais

Sampaio Bruno dá nome a uma rua da nossa freguesia, fazendo parte da Rota da República do concelho. A propósito da toponímia, revelamos um episódio pouco conhecido: a tentativa de Afonso Costa assassinar aquele filósofo portuense.

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● Até falecer, em 1915, José Pereira de Sampaio (Bruno) manteve-se interessado pela sorte da República. A sua independência indomável não lhe permitira manter-se ligado ao Partido Republicano, mas nem por isso abandonara um republicanismo militante. Não era apenas “republicano”: era “um republicano”. A República cruzara-se com o seu pensamento e encontrara aí um lugar acolhedor.

De 1902 em diante, porém, Sampaio Bruno afastara-se do Partido Republicano Português. Quando a Monarquia caiu, em 1910, ele era um homem “acima dos partidos”, um republicano sem clube, um pensador livre cuja opinião punha em respeito os homens do novo regime.

Bruno estivera ligado à formação do Centro Eleitoral Democrático do Porto, com Alexandre Braga e Rodrigues de Freitas (este foi, em 1878, o primeiro deputado republicano eleito em Portugal). E, apesar de ter colaborado com Teófilo Braga, Magalhães Lima, Latino Coelho e Alves da Veiga na defesa da “federação ibérica”, como meio de contrariar o “colonialismo britânico”, rejeitou publicamente, logo desde 1876, a via revolucionária, advogando a luta legal e o reformismo político. É deste republicanismo cívico que Sampaio Bruno se reclama, e que marca as políticas editoriais dos jornais republicanos que fundou, dirigiu ou influenciou.

Bruno vinha da intentona republicana do Porto de 31 de Janeiro de 1891, que era ainda eco das “campanhas patrióticas” contra o Ultimatum inglês de 1890. Foi Bruno quem redigiu o manifesto da revolução. O fracasso das armas republicanas levou o filósofo a um duro exílio em Paris, onde se manteve em estreito convívio político com dois outros conspiradores exilados, Alves da Veiga e João Chagas. São, os três, “republicanos de sempre” e “republicanos independentes” – isto é, não se confundem com os “aderentes” que, sentindo no ar “o cheiro da revolução”, virão a colar-se ansiosamente a um “projecto” cuja vitória se adivinha; e tampouco se confundem com aqueles que, nada tendo para oferecer a não ser a obediência, se submetem às directivas “do Partido”.

O impiedoso olhar crítico de Sampaio Bruno sobre a República não resulta (como sucedeu com outros depois do 5 de Outubro) de “desilusão” ou “desistência” perante o avanço ou o recuo desta ou daquela facção de um regime que mergulha na crise. Bruno não conhece facções: conhece homens. E tanto assim é que, em 1911, tentará ainda, com Basílio Teles e Machado Santos (também eles republicanos “na franja” do regime), dar alento à “Aliança Nacional”, uma plataforma destinada a promover “uma república ampla e aberta a todos os portugueses com cérebro e coração de portugueses”. Sem resultado.

O Congresso de Coimbra: contenda evidente

Regressemos, porém, a 1902, ano em que Bruno se afasta do Partido Republicano. Reunia-se em Coimbra, em Janeiro desse ano, o Congresso do Partido. A ordem dos trabalhos, de acordo com a convocatória, era a seguinte: “1.º, eleição do novo Directório; 2.º, elaboração dum plano de reorganização partidária”. Ora, esta sequência surpreendeu o filósofo, que logo no dia 1 de Janeiro publicava, no diário portuense “A Voz Pública”, a sua opinião: “Chama-se a isto, vulgarmente, andar o carro adiante dos bois. E vê-se que sobreleva a tudo a ambição do mando […]. Pois como é que se começa por eleger o Directório e depois é que se procede à reorganização do partido? Então, se a reorganização do partido adoptasse um plano que acabasse com o processo do Directório; que o substituísse por comissões, por exemplo, ao norte e ao sul do País; ou que, conservando o Directório, o fizesse eleger não por congressos de delegados mas pelo sufrágio universal do partido – como é que se haveria de resolver a contradição, desde que o novo Directório se encontrasse já eleito?”.

Este raciocínio cristalino punha em evidência o que se estava congeminando nos bastidores: um partido, um directório e um “plano de reorganização” à medida do grupo de republicanos que se preparava para tomar conta das operações – o grupo de Afonso Costa.

Em 5 de Janeiro, reunido o Congresso, logo Costa pede a palavra para se referir ao artigo d’”A Voz Pública”, que, “embora sem assinatura, julgava adivinhar tivesse sido escrito pelo ilustre publicista José Pereira de Sampaio (Bruno)”. Num estilo de acinte, Afonso Costa lamentava que os republicanos “andassem publicamente a lavar a roupa suja, em pequenas questões”; e sublinhava, referindo-se a Bruno, que o Partido Republicano de 1902 não era o Partido Republicano de 1891.

Em defesa do filósofo (que não está presente nos trabalhos do Congresso) levanta-se Corregedor da Fonseca: “Todos os congressistas conheciam, pessoalmente ou de tradição, esse homem de superior talento e de rara honestidade, e nenhum, com certeza, sancionaria a afirmação do sr. Dr. Afonso Costa, quando dissesse que não era republicano esse cidadão que toda a vida dedicara à causa da república, a qual já lhe devia não poucos sacrifícios”. Levanta-se o Congresso em aplausos; e Afonso Costa desfaz-se em explicações e elogios ao “talento” do “ilustre publicista”, assegurando que só se referira a Bruno por considerar que o seu artigo “prejudicava a acção”.

O anti-republicanismo do Partido Republicano

Em 9 de Janeiro, ainda no mesmo jornal, Sampaio Bruno volta à carga e revela que já por duas vezes Afonso Costa o desconsiderara no passado: uma, quando deixara sem resposta um pedido de Bruno para que defendesse no Parlamento a amnistia em favor de dois exilados republicanos (o capitão Leitão e o alferes Malheiro); outra, quando dissera, no decorrer da campanha eleitoral no Porto, em 1900, que “a conduta política” de Bruno (que advogara uma salutar abstenção) “não era leal nem sincera”.

Perante este novo ataque “afonsista”, Bruno não tem já dúvidas: “A nova organização do Partido Republicano” é “inteiramente anti-republicana”, “ofensiva do sufrágio popular”, da “dignidade pessoal e da jornalística” e da “autonomia das agremiações”; uma organização “facciosa e absolutista”, “incompatível com os princípios e os sentimentos democráticos”. E conclui: “Entendo, pois, que me cumpre o dever de tornar público o exercício dum direito; e, em consequência, declaro desligar-me, desde hoje em diante, da disciplina partidária, deixando de pertencer, como deixo, ao partido republicano”.

Agressão na via pública

No sábado, 11 de Janeiro de 1902 (dois dias depois desta declaração ter sido publicada), pelas 20h45, Sampaio Bruno “descia, só, tranquilo e sossegadamente, a Rua de Sá da Bandeira”, no Porto. O que então aconteceu vem relatado n’”A Voz Pública” do dia seguinte: “Ao tempo que ele chegava às alturas da casa Guimarães no Porto, um pouco acima do teatro Príncipe Real, atravessou a rua, vindo da Tabacaria Gonçalves, o dr. Afonso Costa, acompanhado duns vinte indivíduos aproximadamente. Súbito o dr. Afonso Costa, dirigindo-se ao sr. José Sampaio, berrou-lhe: “Ah, seu canalha!”. E, levantando a mão, armada dum box de ferro, assentou-lhe uma forte pancada na cabeça. Logo, os indivíduos que acompanhavam o dr., metendo-se na contenda, agarraram os dois, não deixando que o sr. José Sampaio se desforrasse, mas permitindo que o dr. Afonso Costa continuasse agredindo violentamente o sr. José Sampaio. Como é natural, juntou-se no local grande multidão. Na desordem, o dr. Afonso Costa fugiu para a loja Guimarães no Porto, onde se escondeu, acompanhado dos seus amigos. A loja foi logo fechada”.

Assistido por inúmeras pessoas, que logo acorreram, e tratado com curativos, Sampaio Bruno acabou a noite, “com alguns dos mais íntimos”, a jantar num restaurante da cidade. Apresentou-se ainda, na 3.ª feira seguinte, perante o tribunal, para se submeter a um exame médico que confirmou “ter sido agredido por instrumento contundente, ficando com ferimentos que lhe devem produzir impossibilidade de trabalho por oito dias”. Mas, porventura mais enojado do que dorido, declinou apresentar-se como queixoso no processo que o Ministério Público decidiu mover contra Afonso Costa. Para Bruno, Costa despira-se na praça pública; nada mais havia a dizer – nem sobre o seu acto de agressão, nem sobre “a República” que ele fazia antever.

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